Em nenhum lugar de Alice no País das Maravilhas (ou de Alice no País dos Espelhos, já que estamos no assunto) você verá alguém falando sobre uma menina que perdeu a família em um incêndio e foi parar em uma instituição psiquiátrica. Nem que essa mesma garota usa a tal Nação das Fantasias como escape para fugir do trauma – e que esse mesmo lugar está cheio de criaturas desfiguradas, grotescas e assassinas.
Mas essa é a versão da história de Lewis Carrol que está, pela segunda vez, sendo contada pelo diretor americano American McGee. Passei algum tempo testando Alice: Madness Returns (Xbox 360 e PlayStation 3) e vi que, mais do que uma releitura maluca de um clássico que já não era muito normal, o que a Electronic Arts está lançando é uma mistura de aventura com ação no mínimo impressionante.
Coelhos mecânicos com relógio de bolso
Logo de cara você percebe que o novo Alice tem mais estilo que todos Tomb Raiders juntos e de mãos dadas. Isso, em parte, por causa da direção artística meio Timburtiniana. O jogo é repleto de cenários, pessoas e criaturas que misturam o bonito com o bizarro. Crianças desproporcionalmente cabeçudas, velhos desproporcionalmente enrugados,vielas desproporcionalmente estreitas e ratos gigantes com pernas mecânicas operando uma fundição.
O mundo é envolvente, intrigante e assustador, cheio de coisas estranhas para explorar. Narizes de porco alados revelam segredos quando você atira pimenta neles. Se cair em um abismo, a heroína se transforma em borboletas coloridas e volta ao seu lugar de origem. Coelhos mecânicos com relógios de bolso servem como bomba programada. Esse tipo de coisa.
O que tamém chama atenção é o texto. Alice tem cuidado não só com o que diz, mas com a maneira de dizer. Cada fala dos personagens de Madness Returns parece ter sido tirada dos livros originais, sem fazer muito sentido, mas formando um tipo de poesia maior. Meio coisa de louco. Mas que, aliado à parte visual, compõe uma experiência sem igual.
Delirando na ilha das maravilhas
A demonstração de aproximadamente duas horas começou com a jovem Alice no divã de seu psiquiatra tendo delírios em que o País das Maravilhas se transformava em um lugar sangrento e cheio de monstros. O bom doutor está ali, em teoria, para fazê-la esquecer suas experiências traumáticas. As memórias, diz ele, devem ser gerenciadas cuidadosamente. E as desagradáveis devem ser apagadas. Apesar do curto tempo da demonstração, esse pareceu ser um ponto central da trama.
A partir daí você conhece o orfanato onde Alice vive – e onde nenhuma das crianças gosta dela – e as tortuosas ruas de Londres. Depois de seguir um gato branco e delirar com pessoas com cabeças de ratos e uma velha com asas de demônio, você finalmente vai parar na terra das maravilhas.
Lá Alice se transforma: ela troca seus trapos por um vestido, deixando de ser uma menina frágil para se transformar em uma moça esbelta, meio arrogante e que sabe manejar um facão com ninguém. As coisas naquele mundo estão perigosas, avisa o gato Cheshire. Muito mudou desde a última visita da garota, e apesar de ela não estar procurando encrenca, a encrenca está procurando por ela.
Durante o teste foi possível visitar uma floresta, uma montanha, uma fábrica e uma fundição, tudo dentro do primeiro capítulo do jogo. E mencionamos Tomb Raider acima porque a mecânica de Madness Returns tem muito em comum com as aventuras mais tradicionais de Lara Croft.
Você vê Alice sempre pelas costas (com movimentos de câmera um pouco bruscos demais) e cada cenário tem uma boa mistura de plataforma, exploração e combate, com mais ênfase nos dois primeiros do que no último. E mesmo para mim, que sou notoriamente terrível em pulos de jogos tridimensionais, essa navegação foi bastante suave. Principalmente porque desde o início você já pode planar e dar quantos pulos adicionais quiser enquanto está no ar. Sem aquela história de precisar destravar as habilidades.
Distúrbio psicológico
O mais impressionante da demonstração, porém, é como o combates funcionam bem. Enfrentar as criaturas deformadas do País das Maravilhas exige o uso inteligente de todos os recursos que você tem. No meu caso, a Lâmina Vorpal, a metralhadora de pimenta, um guarda-chuva-escudo e uma esquiva, que deixa a heroína invencível por alguns instantes.
Os inimigos mais simples caem com combos simples da espada, mas mesmo assim é preciso ficar esperto para não levar um contra-ataque. Já contra as chaleiras mecânicas do Chapeleiro Louco é preciso primeiro usar as pimentas para atordoá-las e depois furar seus olhos com a ponta afiada da adaga. As batalhas são interessantes, variadas, têm a duração certa e conseguem ser simples mesmo assim.
A energia de Alice é medida por pétalas de flores. Quando chega a última delas, a menina entra em frenesi: a tela fica toda branca e vermelha, sua força aumenta e cada inimigo morto recupera uma casa da barra de vida. Um sistema bom para os desesperados mas que, acima de tudo, contribuiu para o clima e o estilo do jogo.
Outro poder, obtido logo no começo da aventura, é o de encolher. Ficar pequeno é bom para entrar em passagens estreitas, como você imagina. Mas algo a mais acontece: enquanto soluça e solta bolhinhas pela boca, Alice tem seus sentidos aguçados quando está sob o efeito da poção. O mundo muda de cor e é possível ver caminhos escondidos, marcações que mostram para onde ir e outros segredos.
Tanto os inimigos quanto os objetos quebráveis nos cenários rendem dentes, a “moeda” do jogo. Eles podem ser oferecidos à caveira que adorna o laço do vestido da menina assassina para fortalecer suas armas. Mas diferente da maioria dos games atuais, esses power-ups são um tanto quanto caros: pegando tudo o que tem pela frente, só consegui ganhar um nível adicional da Lâmina Vorpal, e com algum sofrimento.
Mesmo com pouco tempo para explorar o País das Maravilhas, Madness Returns já se provou um game interessante para quem procura algo diferente em meio aos guerreiros carrancudos e histórias manjadas.